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sábado, 8 de janeiro de 2011

Esses nórdicos…

— Para Kierkegaard, o cristianismo era ao mesmo tempo tão avassalador e tão adverso à razão que só podia ser “ou isto, ou aquilo”. Quer dizer, ele achava que não era possível ser “um pouco cristão”, ou então “cristão até certo ponto”. Pois ou Jesus Cristo tinha ressuscitado no domingo de Páscoa, ou não. E se ele realmente tivesse se levantado dos mortos, isto seria algo tão avassalador que teria necessariamente de marcar toda a nossa vida.

— Entendo.

— Mas Kierkegaard observava que a Igreja e a maioria dos cristãos de seu tempo tinham uma posição extremamente evasiva em relação às questões religiosas. E ele não aceitava isto de jeito nenhum. Religião e razão eram, para ele, como fogo e água. Kierkegaard achava que não bastava achar “verdadeiro” o cristianismo. Ter uma fé cristã significava seguir os passos de Jesus.

— E o que isto tinha a ver com Hegel?

´[…]

— Ele chegou a se encontrar com Hegel em Berlim?

— Não. Hegel já havia falecido dez anos antes, embora continuasse a viver “em espírito” em Berlim e em muitas partes da Europa. Seu “sistema” era usado como uma espécie de explicação geral para todas as perguntas imagináveis. Kierkegaard assumiu uma posição radicalmente oposta e explicou que as “verdades objetivas”, com as quais se ocupava a filosofia hegeliana, eram totalmente irrelevantes para a existência do homem enquanto indivíduo.

— E que verdades seriam relevantes?

— Para Kierkegaard, mais importante do que a busca de uma VERDADE com letras maiúsculas era a busca por verdades que são importantes para a vida de cada indivíduo. Ele dizia que o importante era encontrar “a minha verdade”, a verdade de cada um. Ele opunha o indivíduo ao “sistema”, portanto. Kierkegaard dizia que Hegel também tinha se esquecido de que era apenas uma pessoa. Ele zombava do tipo do professor hegeliano que vivia no alto de uma torre de marfim e que, preocupado em explicar os mistérios da vida, esquecia o seu próprio nome, esquecia-se de que era uma pessoa, uma pessoa como outra qualquer, e não meia dúzia de parágrafos bem elaborados que de verbo tinham se tornado carne.

— E o que é o ser humano para Kierkegaard?

— Isto não dá para responder de uma maneira geral. Kierkegaard não está nem um pouco interessado numa descrição genérica da natureza ou do “ser” humano. Fundamental para ele é a existência de cada um. E o homem não experimenta sua existência atrás de uma escrivaninha. Somente quando agimos, e sobretudo quando fazemos uma escolha, é que nos relacionamos com nossa própria existência. Uma história que se conta sobre Buda pode ilustrar o que Kierkegaard quer dizer.

— Sobre Buda?

— Sim, pois a filosofia de Buda também tem como ponto de partida a existência humana. Certa vez, um monge disse a Buda que ele dava respostas pouco claras para perguntas importantes, tais como o que é o mundo ou o ser humano. Buda respondeu com o exemplo de uma pessoa que é ferida por uma seta envenenada. O ferido não tem qualquer interesse teórico em saber de que material a seta é feita, em que tipo de veneno ela foi embebida ou de que ângulo ela o atingiu.

— Provavelmente, o que ele quer é que alguém lhe extraia a seta envenenada e cuide do ferimento.

— Não é mesmo? Isto sim seria existencialmente importante para ele. Tanto Buda quanto Kierkegaard tinham plena consciência de que só viveriam por um curto período de tempo. E, como dissemos, nesse caso não dá para ficar sentado atrás de uma escrivaninha, especulando sobre o espírito do mundo.

— Entendo.

— Kierkegaard também disse que a verdade era “subjetiva”. Não no sentido de que é totalmente indiferente o que pensamos ou aquilo em que acreditamos. Kierkegaard só queria dizer que as verdades realmente importantes são pessoais. Somente tais verdades são “verdades para mim”, são verdades para cada um.

— Você poderia me dar um exemplo dessas verdades subjetivas?

— Uma questão importante, por exemplo, é a de se saber se o cristianismo é verdade. Para Kierkegaard, esta não é uma questão para ser encarada do ponto de vista teórico ou acadêmico. Para alguém que se entende como algo que existe, trata-se aqui de vida ou morte. E isto não se discute simplesmente porque se gosta de discutir. Trata-se de algo que deve ser abordado com absoluta paixão.

[…]

— E a fé assume importância maior quando se trata de questões religiosas. Kierkegaard acha que se quero entender Deus objetivamente, isto significa que eu não creio; e precisamente porque não posso entendê-lo objetivamente é que preciso crer. Assim, se quero preservar minha fé, preciso estar sempre atento para não me esquecer de que estou na incerteza objetiva “sobre setenta mil braças de água”, e ainda assim creio.

— Esta foi da pesada.

— Antes de Kierkegaard, muitos tinham tentado provar a existência de Deus ou então entendê-la racionalmente. Mas quando nos envolvemos com tais provas de existência de Deus ou com tais argumentos racionais, perdemos nossa fé e, com ela, nosso fervor religioso. Isto porque o fundamental não é saber se o cristianismo é verdadeiro, mas se é verdadeiro para mim. Na Idade Média expressava-se o mesmo pensamento com a fórmula “credo quia absurdum”.

— O quê?

— A expressão significa “Creio, porque é absurdo”. Se o cristianismo tivesse apelado à razão, e não ao nosso outro lado, ele não seria uma questão de fé.

— Agora entendi.

[…]

— Aquele que vive no estágio estético está sujeito a sentimentos de medo e a sensação de vazio. Mas se ele experimenta esses sentimentos, então também há esperança. Para Kierkegaard, o medo é uma coisa quase positiva. Ele é um sinal de que a pessoa se encontra numa “situação existencial”. O esteta pode então decidir se quer dar o salto para um estágio superior. Ou ele acontece, ou então não acontece. De nada ajuda estar na iminência de pular e depois não realizar o salto. Ou uma coisa ou outra. E também não é possível que outra pessoa dê o salto em seu lugar. Você mesma tem de decidir e você mesma tem que pular.

— É mais ou menos como quando alguém quer largar a bebida ou as drogas.

— Sim, talvez. Quando Kierkegaard fala dessa decisão, ele nos faz lembrar um pouco de Sócrates, para quem todo conhecimento verdadeiro vinha de dentro. A decisão que leva uma pessoa a saltar de uma visão de mundo estética para uma ética ou religiosa deve vir de dentro. É exatamente isto que Ibsen mostra em Peer Gynt. Outro exemplo magistral de uma escolha existencial nos é dado pelo romance Crime e castigo, do escritor russo Dostoievski. Quando terminarmos nosso curso de filosofia, você não pode deixar de ler este livro.

— Vamos ver. Quer dizer que Kierkegaard acha que quando a coisa fica séria para o lado de alguém, a pessoa escolhe outra forma de ver a vida.

— E talvez comece a viver num estágio ético. Este estágio é marcado pela seriedade e por decisões consistentes, tomadas segundo padrões morais. Você se recorda da ética do dever, de Kant, segundo a qual devemos tentar viver de acordo com a lei moral. Como Kant, Kierkegaard também dedica sua atenção neste assunto sobretudo ao temperamento humano. O essencial não é necessariamente o que se considera certo ou errado. O essencial é a decisão de se posicionar em relação ao que é certo e ao que é errado. O esteta se interessa apenas pelo que é divertido ou entediante.

— E não se corre o risco de se levar a vida um pouco a sério demais quando se vive assim?

— É claro que sim. Mas Kierkegaard ainda não está satisfeito com o estágio ético. Para ele, também chega o dia em que o homem zeloso se cansa de ser tão ordeiro e tão cônscio de seus deveres. Muitas pessoas passam bem tarde na vida por esta fase de tédio e de fadiga. E então é possível que algumas delas adotem uma atitude mais lúdica em relação à vida e retornem ao estágio estético. Outras, por sua vez, ousam mais um salto rumo ao próximo estágio, o estágio religioso. Elas ousam o grande salto rumo às “setenta mil braças de água” da fé. Elas preferem a fé ao prazer estético e aos mandamentos da razão. E embora possa ser desesperador “cair nas mãos do Deus vivo”, para usar uma expressão do próprio Kierkegaard, só nesse caso o homem pode se reconciliar com sua própria vida.

— Através do cristianismo, portanto.

— Sim. Para Kierkegaard, o estágio religioso era o cristianismo. Apesar disso, sua filosofia influenciou também muitos pensadores não-cristãos. Em nosso século [XX] surgiu uma chamada filosofia da existência, ou Existencialismo, fortemente inspirada em Kierkegaard.

Jostein Gaarder em O mundo de Sofia

Um comentário:

O Tempo Passa disse...

Se mudar a frase "estágio religioso" para outra, tipo "estágio espiritual" ou "estágio vital", eu assino embaixo!